quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A curva do Rio

"Há muito que desejo escrever-te esta carta, como se uma força oculta fosse falando cada vez mais alto dentro do meu peito, uma voz muda que vai ganhando força e subindo até à garganta, tudo arranhando pelo caminho, inevitável e consistente, como um curso de um rio.
Quando o nosso amor nasceu, vi-o a correr muito depressa debaixo dos meus olhos e quiz ir atrás dele. Perdi o meu tempo porque não percebi que era única que o seguia. Não te vi parado, do outro lado da margem, que se ia cavando cada vez mais larga e funda, impotente ao caudal, assustado com a minha determinação, tu que só somas certezas depois de se dissiparem todas as dúvidas e que preferes sempre não acreditar em ti e nos outros, até que o tempo e a sorte te vençam. Somos o avesso um do outro. Quando duvidas, páras, e eu sigo em frente. Quando tens medo, eu tenho vontade; quando sonhas, eu pego nos teus sonhos e torno-os realidade; quando te entristeces, fechas-te numa concha e eu choro para o mundo; quando não sabes o que queres, esperas que eu escolho; quando alguém te empurra, tu foges e eu deixo-me ir. Como já disse somos o avesso um do outro: iguais por dentro, o contrário por fora. Tu proteges-me, acalmas-me, ouves-me e ajudas-me a parar. Eu puxo por ti, sacudo-te e ajudo-te a avançar. Como duas metades teimosas, vivemos de costas voltadas um para o outro, eu sempre à espera que te vires e me abraces, e tu sempre à espera que a vida te traga um sinal, te aponte um caminho e escolha por ti o que não és capaz.
Sobram-me palavras, ainda e sempre as palavras que correm pelo rio. Histórias, mensagens, crónicas, um livro, conversas, e mais histórias, porque as palavras são as únicas que nunca me falham, que me alimentam os sonhos e me sustentam os dias quando nada mais me rodeia para além do silêncio e uma vaga ideia de espera, desbotada pelo cansaço e pelo tempo. Nenhum rio corre duas vezes e o amor é um mistério em estado líquido que se pode solidificar numa relação quase perfeita ou evaporar-se com o tempo e a distância, chamando a ausência para o lugar do futuro. E quando o futuro é um lugar deixado vazio, nada mais, há a fazer senão voltar para trás e procurar, uma nova nascente.
Estou cansada de sonhar, de esperar, de desejar, de te querer e não te ter. Depois de todas as palavras e de todas as esperas, fiquei sem armas e sem forças. Sobra-me apenas a certeza de que nada ficou para fazer ou dizer, que os sonhos nunca se perderam, apenas se gastaram com a erosão do tempo e do silêncio. Nas noites de Inverno aquecidas pela minha lareira, protegida na minha casa branca de tectos altos e rodeiada de jasmim e alfazemas, descanso pela primeira vez em muitos meses, enquanto conjugo quase sem dor o verbo desistir, ao som de uma linda melodia, que é a música dos que aprendem a desistir.
Talvez na curva do rio o mundo mude outra vez."

Sem comentários:

Enviar um comentário